Aborto inseguro afasta Brasil de meta da redução da mortalidade materna

País registra 60 óbitos por 100 mil nascidos vivos, o dobro da meta determinada pela ONU para 2030

 

Por Soledad Dominguez, Natalia Veras, Mariana Oliveira

  • Como o aborto inseguro coloca em risco a vida das mulheres

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  • As ameaças aos direitos reprodutivos e sexuais

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O Brasil tem uma dívida com a saúde das mulheres, principalmente com aquelas que enfrentam complicações na gravidez. Como parte das Metas de Desenvolvimento do Milênio da Organização das Nações Unidas (ONU), o país firmou o compromisso de reduzir as mortes maternas para menos de 35 a cada 100 mil nascidos vivos até 2015. Mas com a pandemia, o país chegou a registrar 107,53 mortes a cada 100 mil nascidos vivos em 2021, conforme dados preliminares do Ministério da Saúde mapeados pelo Observatório Obstétrico Brasileiro. 

Até o início do segundo semestre de 2022, a Razão de Mortalidade Materna Materna (RMM) ainda era de 60 óbitos por 100 mil nascidos vivos, número muito distante de países da Europa Ocidental, que registram menos de 10, de acordo com levantamento do Banco Mundial (2017). A nova meta, estabelecida para 2030, é de 30 óbitos por 100 mil nascidos vivos.

São consideradas mortes maternas aquelas decorrentes de problemas relacionados ou agravados pela gravidez, durante a gestação ou até 42 dias após o parto. Os motivos mais frequentes, segundo o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), são hipertensão, hemorragias graves, infecções, e abortos inseguros. Estas são mortes evitáveis, mas, no Brasil, parecem naturalizadas. 

Aborto está entre as 5 principais causas de mortalidade materna

2010-2020

Hipertensão

3555

Hemorragia

2089

Infeccção puerperal

1063

Aborto

723

fonte SIM/Datasus

Aborto está entre as 5 principais causas de mortalidade materna

2010-2020

Hipertensão

3555

Hemorragia

2089

Infeccção puerperal

1063

Aborto

723

fonte SIM/Datasus

ler Mães mortas: onde falha o sistema de saúde que negligencia a vida das mulheres negras

“As mulheres com maior risco de morte e sequelas de abortos inseguros são as mais jovens, indígenas, negras e residentes em áreas urbanas de periferia ou rurais, sem acesso a transporte público, mais pobres, com menos educação formal e menos informações sobre saúde sexual e reprodutiva. Elas estão mais expostas a relacionamentos abusivos e violência sexual. Nesse contexto, o alcance da meta relacionada à redução da mortalidade como parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ainda está muito distante da realidade”, reflete Beatriz Galli, assessora da Ipas Partners for Reproductive Justice, organização internacional sem fins lucrativos que trabalha com direitos sexuais e reprodutivos.

Como o aborto inseguro coloca em risco a vida das mulheres

De acordo com informações da Organização Mundial da Saúde (OMS), 25 milhões de abortos inseguros são realizados anualmente no mundo, o que resulta em uma taxa de mortalidade de 4,17% a 13,8%. Nos países em que a prática é legalizada, a taxa de procedimentos inseguros é de apenas 10%, enquanto naqueles onde o aborto é proibido,  esse índice sobe para 25%. Ainda de acordo com a OMS, o aborto inseguro está entre as cinco principais causas de morte materna no mundo. 

A OMS define aborto inseguro como um procedimento para o término da gestação, realizado por pessoas sem a habilidade necessária ou em um ambiente sem padronização para a realização de procedimentos médicos ou a conjunção dos dois fatores. 

A pandemia agravou este quadro. No Brasil, entre 2016 e 2020, foram notificados 300 casos de morte com aborto como causa básica, a maior parte identificada como “aborto não especificado”. “Em ambientes [países] onde o aborto é criminalizado, como no Brasil, é difícil definir ou registrar a causa da morte. Isso requer estratégias diferentes, como o uso de pesquisas de campo, com respostas apontadas sob sigilo”, explica Cristião Rosas, ginecologista e obstetra, representante no Brasil da Rede Médica Pelo Direito a Decidir. 

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Devido à criminalização do aborto e a outras razões que contribuem para a subnotificação, como a qualidade da investigação das mortes, esse número pode ser muito maior. De acordo com o estudo “Causas múltiplas de mortalidade materna relacionada ao aborto no Estado de Minas Gerais”, de Eunice Francisca Martins, estima-se que, ao analisar as causas secundárias da mortalidade materna, o número de óbitos associado ao aborto seja 38% maior do que o identificado pelas estatísticas oficiais.

Os dados de internações hospitalares por aborto também são subnotificados: “Não é possível cravar onde o aborto inseguro aparece no DATASUS porque não existe uma classificação para aborto provocado e que não seja o das vias legais”, explica Cristião. A classificação “Outras gravidezes que terminam em aborto” aparece como a mais frequente causa de internação hospitalar.

Internações causadas por aborto

2020 - set 2022

Outros

tipos de

aborto

274 mil

set

2022

2020

2021

100 mil

Aborto espontâneo

210 mil

50 mil

Aborto

por razões médicas

0

5,7 mil

fonte SIh/ Datasus

Internações causadas por aborto

2020 - set 2022

Outros tipos

de aborto

set

2022

274 mil

2020

2021

100 mil

Aborto

espontâneo

50 mil

210 mil

5,7 mil

0

Aborto

por razões

médicas

fonte SIM/Datasus

ler Aborto e mortalidade materna: a ciência como aliada para salvar vidas

Hoje, o aborto é uma intervenção segura e de baixo risco para as mulheres, quando realizado em condições adequadas. A OMS recomenda o uso do misoprostol, para estimular as contrações, e da mifepristona, para induzir o aborto. Este último medicamento carece de solicitação junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para uso no Brasil. 

As restrições de uso hospitalar acarretam em limitações para regulamentações e mais burocracia para aquisição, armazenamento e dispensação do misoprostol. Um documento da Rede Médica Pelo Direito a Decidir em abril de 2022 recomenda “que as autoridades sanitárias brasileiras promovam urgentemente as ações necessárias para retirar as restrições impostas sobre a dispensação do medicamento, garantindo, assim, acesso a esse medicamento essencial para a saúde reprodutiva de meninas e mulheres brasileiras e em respeito às suas garantias constitucionais”.   

As ameaças aos direitos reprodutivos e sexuais

Reduzir a Razão de Mortalidade Materna para, no máximo, 30 mortes por 100 nascidos vivos continua a ser um objetivo a ser alcançado. Desta vez, a linha de chegada é 2030, como parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da ONU. Para isso, o governo brasileiro precisa assegurar o acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo planejamento reprodutivo. 

No entanto, estes direitos ainda são ameaçados. Em 2022, o Ministério da Saúde lançou um manual chamado “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”. Este documento foi recebido com duras críticas por organizações da sociedade civil, associações médicas e de pesquisa, já que distorcia informações básicas sobre o aborto previsto na legislação brasileira. 

“Nele podemos destacar dois pontos que atentam contra os direitos das mulheres: a necessidade de investigação policial nos casos de gravidez decorrente de estupro e a negação de que a mortalidade materna não é problema de saúde pública, sendo que óbitos por abortamento são uma das principais causas de mortalidade materna no Brasil”, enfatiza Cristião Rosas. 

Ainda assim, ele afirma que é possível reduzir a mortalidade materna no Brasil:

“Com determinação do Estado é possível. A maneira mais factível de se atingir as 30 mortes por 100 mil nascidos vivos mencionadas nos ODS é assegurando o acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva de alta qualidade, baseadas em evidências científicas, e o acesso à informação e acabando com todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas”.

 


 

Apoio Instituto Serrapilheira — projeto contemplado na chamada “O papel da ciência no Brasil de amanhã”
Realização Genêro e Número e GHS América Latina
Pesquisa e reportagem Soledad Dominguez, Natalia Veras, Mariana Oliveira
Edição Maria Martha Bruno
Design Marilia Ferrari

 

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